Perspectivas das Pandemias, por Thomas Lovejoy

maio 13, 2020


Como uma boa parte do mundo, eu estou em quarentena por causa do vírus COVID-19. Não é a primeira pandemia histórica: eu presenciei epidemias de poliomielite antes da vacina, quando os pais se referiam à doença na frente de crianças apenas soletrando – P-O-L-I-O –, pensando que elas não entenderiam. Claramente, há um século não existia uma pandemia global de influenza. E nós acompanhávamos as notícias de forma angustiante assim que o Ebola emergiu nas populações humanas na África mais de uma vez. O mesmo aconteceu com SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) e MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) na Ásia e no Oriente Médio.  

Exceto a pólio, que é apenas transmitida de humano a humano, grande parte dos agentes dessas doenças fazem parte dos ciclos naturais que se alastram entre os humanos por causa de um distúrbio na natureza. Provavelmente, o exemplo clássico é a febre amarela. Agora facilmente combatida pela melhor vacina já feita, contou com um ciclo urbano de um mosquito (Aedes aegypti) adaptado à vida em comunidades humanas. Antes da vacina, a eliminação agressiva de potenciais focos de mosquitos foi poderosamente eficaz na prevenção de doenças. 

O outro ciclo – normalmente chamado de “febre amarela selvagem” – é diferente. Ele se move de forma nômade nas copas das árvores na floresta, matando bugios e outras espécies de macacos - e, mais recentemente, o mico-leão-dourado, nos arredores do Rio de Janeiro. De vez em quando, uma pessoa saía da floresta com um caso de febre amarela, um fato intrigante para muitos porque o ciclo natural ocorre 30 metros acima do solo.  

Quando eu era estudante de graduação, compartilhei o escritório com um pesquisador colombiano, Jorge Boshell, no Instituto Evandro Chagas de Belém (PA) – hoje, um instituto de referência continental na pesquisa de arboviroses. Anteriormente, em sua carreira, Jorge sucedeu Marston Bates e se tornou segundo Diretor do Laboratório da Fundação Rockefeller em Villavicencio, Colômbia. Um dia, enquanto assistia a madeireiros derrubarem uma árvore, ele viu logo em seguida pequenos mosquitos do gênero Haemagogus, da copa das árvores, circulando em volta deles – conhecidos transmissores da febre amarela.         

Há muitos caminhos que podem ser vistos como o máximo exemplo de impactos negativos para a saúde humana vindos de desequlíbrios da natureza. O desmatamento na Amazônia alimenta criadouros para hospedeiros e vetores de outros males, como malária e esquistossomose. As consequências pioram nos modernos sistemas de transporte que misturam não apenas patógenos humanos, mas também pragas de plantas e animais e organismos de doenças em todo o mundo. 

Enquanto escrevo este artigo, um navio chinês de carvão foi descoberto no porto de Baltimore com enorme quantidade de ovos da traça cigana asiática, uma praga conhecida em pelo menos 500 espécies de plantas. Não devemos nos surpreender pelo contínuo aparecimento de novas doenças – muitas com potencial pandêmico – se a humanidade continuar em sua destruição em massa da natureza. 

Isso não é, como uma manchete já apontou, uma vingança da natureza. Nós realmente fizemos isso conosco, apesar do constante alerta de cientistas. Indo em frente, nós poderíamos ser mais sensíveis e cuidadosos do que somos. Preservar o habitat e, principalmente, limitar a destruição das florestas tropicais ao mesmo tempo controlar até eliminar o tráfico de animais silvestres – fechando os mercados de animais silvestres da China e do sul da Ásia e a carne de animais silvestres na África – deveria ser uma prioridade nacional e internacionalmente. Algumas notícias apontam que a China já está se movimentando ante à promessa de acabar com o tráfico de animais silvestres. Cada nova morte de COVID-19 enfatiza a necessidade de fazermos isso rapidamente e de maneira absoluta.  

Para epidemiologistas, a pandemia COVID-19 não é uma surpresa. Este vírus é um parente relativamente próximo do vírus SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) que se aloca em morcegos imunes aos seus efeitos (um aspecto idiossincrático que pode contribuir para o desenvolvimento do tratamento em humanos). Basicamente, os mercados de vida silvestre são um pesadelo para os maus-tratos de várias espécies, em meio a condições sanitárias péssimas – o que acelera a façanha do vírus de pular de um morcego selvagem para um outro animal que, em breve, será adquirido e consumido.  

A lição para a humanidade é não temer a natureza que nos mantém e de onde viemos, mas sim restaurá-la, abraçá-la e entender como viver e se beneficiar dela. Nós sabemos, por exemplo, como a própria biodiversidade pode diminuir a incidência de doenças, pelo menos para algumas instâncias. Nos EUA, a transmissão da Doença de Lyme diminui quando a produção de bolotas em carvalhos centenários é modesta e os outros organismos do ciclo estão mais equilibrados entre si em comparação com a situação nos principais anos de colheita de bolotas. 

E toda essa biodiversidade é essencial nessa gigante biblioteca de soluções pré-testadas a vários desafios biológicos que chegam por meio da evolução e seleção. A humanidade tem um grande respeito por bibliotecas de suas próprias “obras”. Há vários motivos para tratar a biblioteca viva da natureza com o mesmo respeito e cuidado.  

Uma das questões que um biologista como eu odeia é quando alguém pergunta sobre algum organismo escolhido aleatoriamente (muitos desconhecidos pela ciência): O quanto isso é bom? Isso é a mesma coisa que alguém pegando um livro da estante e perguntando sem ter lido: "o quanto isso é bom?".

Da mesma forma, alguém pode perguntar para que servem os vírus – ou qual é o valor de um determinado vírus. Uma figura lendária na história da Medicina, um dia, perguntou isso antes mesmo de cientistas saberem que vírus existiam. Edward Jenner sabia que tinha uma doença que ocorria entre leiteiros que se chamava varíola bovina. Ele também observou que parecia haver uma estranha relação entre aqueles que sofriam da varíola bovina e outros que pareciam ser intocáveis por outra doença – outro tipo de varíola.  

Mesmo ele não sabendo quais eram os agentes que causavam essas duas doenças, ele concluiu que varíola conferia imunidade ao outro tipo de varíola. Com sua convicção, ele conduziu um experimento que demonstrou que as vítimas de uma varíola bovina não “pegavam” a outra varíola. O nome latino para essa causa invisível era Vaccinia (do latim para vaca), o que levou ao termo vacinação – um dos fundamentos da medicina moderna.  

O número de pessoas que levaram vidas mais longas, saudáveis e produtivas por causa das vacinas é inestimável - certamente alguns bilhões. A produtividade da humanidade também foi aprimorada. Estamos ansiosos para conseguir a vacina do COVID-19 o mais rápido possível e estamos entusiasmados que a vacina da dengue esteja, em breve, em nossas mãos. Mesmo assim, alguém já parou para reconhecer e agradecer a natureza e o vírus Vaccinia? 

Muitos estão vendo a pandemia como se a natureza estivesse lutando contra tudo que foi e continua sendo feito contra ela. O comportamento humano e desrespeito pela natureza é que tem sido a causa. Além disso, à medida em que contemos a pandemia, a mudança do clima está avançando e causará fortes movimentos de mudança em todos os ecossistemas, facilmente pesando a balança à favor de patógenos atualmente desconhecidos entre nós.  

A forma mais sábia para superarmos isso é investindo em conservação e ciência, além de abraçar a natureza e toda a sua variedade de vida com a qual compartilhamos o planeta. Um futuro saudável para a humanidade e um planeta com a biodiversidade saudável andam de mãos dadas. 

 
*Thomas Lovejoy é ambientalista, biólogo, doutor pela Universidade de Yale, nos Estados Unidos, e é membro do conselho deliberativo da Conservação Internacional (CI-Brasil). Tem 254 artigos científicos e 8 livros publicados ao longo de sua carreira.  

 

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